A dominação político-cultura: os anos de colonialismo e de imperialismo
Não se pode pensar o presente sem deixar de se pensar no passado. Digo isso pois, mesmo no século XXI ainda pode-se facilmente encontrar ecos do período colonial em nossa cultura. “Em nossos dias, não existe praticamente nenhum norte-americano, africano, europeu, latino-americano, indiano, caribenho ou australiano-a a lista é bem grande- que não tenha sido afetado pelos impérios do passado”.[1] Para começar basta refletirmos a respeito de como o europeu ao pisar nas novas terras não apenas aniquilou populações indígenas fisicamente, mas também culturalmente. Tais culturas tiveram seu quase completo apagamento bastante facilitado pelo fato de serem pouco registradas. Esse caráter de quase total agrafia propiciou ao dominador branco europeu uma forma mais simples de doutrinar os povos com seus preceitos religiosos, literários e culturais. No caso de nosso país, para entendermos bem a extensão de tal processo, basta tentarmos delimitar o que sobrou para nós nos dias de hoje da cultura e história indígena. Evidentemente que o pouco que nos resta no presente é um pouco que foi escrito sob a ótica do dominador, o que propicia um tipo de discurso altamente limítrofe. E seria ingênuo afirmar que a Literatura, a Música e a Cultura como um todo não refletiram e não refletem de alguma maneira tais idéias. Os escritores e artistas da Europa como um todo jamais estiveram alheios ao processo de colonialismo e de imperialismo. Essas questões coloniais manifestaram-se em suas realizações artísticas, assumida ou veladamente, e conforme exemplificarei ao longo do texto, ainda se manifestam.
Ainda sob a visão do europeu sobre os “nativos” dominados, acredito que não seja revelador afirmar que o branco, nos primeiros tempos de colonização, moldou no índio uma visão sobre ele mesmo que pudesse acima de tudo viabilizar e justificar o processo de dominação. E tal visão, incrivelmente observando, fora o fato de ter sido absorvida pelo nativo (em muitos casos com resistência e derramamento de sangue, mas no final das contas, absorvida), ainda ecoou pelos séculos seguintes. Faço questão de citar aqui uma passagem no mínimo escabrosa de Jules Harmand, proferida em 1910, acerca do colonialismo britânico:
É necessário, pois, afirmar como princípio e ponto de partida o fato de que existe uma hierarquia de raças e civilizações, e que nós pertencemos à raça e civilização superior, reconhecendo ainda que a superioridade confere direitos, mas, em contrapartida, impõe obrigações estritas. A legitimação básica da conquista de povos nativos é a convicção de nossa superioridade, não simplesmente nossa superioridade mecânica, mas nossa superioridade moral. Nossa dignidade se baseia nessa qualidade, e ela funda nosso direito de dirigir o resto da humanidade. O poder material é apenas um meio para esse fim.[2]
Falando em termos simples, o europeu como um todo, no decorrer do período colonial e mais tarde do período imperialista, convenientemente necessitava desse tipo de discurso e necessitava que o dominado, o elemento da suposta “raça inferior”, também assimilasse tal discurso. E da mesma forma que muitos europeus hoje sentem um certo remorso de suas experiências imperiais do passado, muitos certamente ainda se orgulham e gostariam que os “velhos tempos” ainda fossem vigentes. E é digno de nota que ainda que hoje em dia tenhamos acesso a uma série de profundos e detalhados estudos pós-coloniais ainda possamos encontrar diversos grupos que, assumidamente ou inconscientemente, assimilam a postura de colonizado e de alguma forma afirmam que a experiência de dominação colonial e imperial trouxe muito mais benefícios do que malefícios. Para falar um pouco mais sobre como esses valores de dominação se fazem vigentes ainda hoje, recorro a algumas definições e reflexões acerca do conceito de cultura(s).
Culturas entrelaçadas
Ninguém que se proponha a desenvolver um estudo sobre a cultura brasileira deve deixar de encará-la sob uma perspectiva plural. Falar de uma cultura brasileira parece-me por demais estreito, ainda mais levando-se em consideração que nós, enquanto colonizados, recebemos uma forte influência cultural de nações da Europa (conforme já falei anteriormente)além do já famigerado processo de miscigenação racial. Falar de uma suposta unidade da cultura brasileira é ignorar toda a diversidade de raças (sem a intenção de denegrir grupo algum) e, principalmente, de classes sociais.Para aprofundar mais meu ponto faço menção ao pertinente estudo feito por Alfredo Bosi em seu Dialética da Colonização. Se entendemos o termo cultura como uma herança de valores e objetos compartilhada por um grupo humano relativamente coeso, podemos estabelecer no cenário brasileiro o binômio cultura universitária e cultura popular.
Pode-se enxergar a cultura universitária como uma forma de investimento a ser feita por grupos restritos, um objetivo a ser alcançado e propagado por representantes das classes média e alta. Uma entidade de saber feita por essas classes para essas classes, em sua grande maioria. Se entendemos a cultura universitária como a cultura predominantemente composta por membros das classes média e alta, podemos, antagonicamente, ver a cultura popular como composta por grupos das classes menos abastadas. Denominando este argumento de culturas muito apropriadamente como “culturas que se produziram sempre sob o ferrete da dominação”(p.323), Alfredo Bosi classifica como “populares” essas manifestações encontradas fora do eixo escolar/universitário, pequenas instituições que existem em alteridade em relação às grandes instituições culturais socialmente prestigiadas. São exemplos desta cultura popular as religiões afro-brasileiras, as festas regionais, o rituais indígenas, abrangendo até mesmo grupos evangélicos e católicos. A cultura popular acima de tudo é um modo de viver do homem.
É nesse momento que se insere uma outra importante noção de cultura, paralela às duas apresentadas. Atualmente não se pode ignorar a existência da cultura de massas, a cultura enquanto um bem de consumo. Destaco aqui as palavras de Alfredo Bosi[3] :
O homem da rua liga o seu rádio de pilha e ouve a música popular brasileira ou, mais freqüentemente, música popular (ou de massa) norte-americana. A empregada doméstica liga o seu radinho e ouve a radionovela ou o programa policial ou o programa feminino. A dona de casa liga a televisão e assiste às novelas do horário nobre. O dono da casa liga a televisão e assiste com os filhos ao jogo de futebol. As crianças ligam a televisão e assistem aos filmes de bangue-bangue. Quase todos ouvem o repórter da noite. A música e a imagem vêm de fora e são consumidas maciçamente. Em escala menor, o jornal, ou a revista, dá a notícia do crime, ou comenta as manobras da sucessão ou os horrores da seca ou a geada do Paraná. Em escala menor ainda, o casal vai ao cinema: assiste ao policial, à ficção científica, à comédia ligeira, à chanchada. Os adolescentes lêem histórias em quadrinhos. As adolescentes lêem as fotonovelas. Tudo isto é fabricado em série e montado na base de algumas receitas de êxito rápido. Há revistinhas femininas populares e de classe média que atingem a tiragem de 500 mil exemplares semanais, com mais de um milhão de leitoras virtuais. Isso é cultura de massa, ou, mais exatamente, cultura para as massas. (P.320-321)
Não é exagero afirmar que a partir de um determinado ponto do século XX ninguém poderia considerar-se excluído ou alheio a esse “universo cultural administrado”. Até mesmo o universitário, mesmo tendo uma consciência crítica dessa esfera cultural, hoje em dia é afetado por ela, tem seu imaginário e sua visão de mundo construída em algum grau pela dita cultura de massas. No âmbito da dominação cultural não precisamos nos alongar muito para perceber como esses mecanismos de cultura de massas auxiliam, em terras do dito “Terceiro Mundo”, a propagar um discurso de imperialismo cultural. Basta observarmos a enxurrada de filmes e seriados norte-americanos que recebemos hoje em dia ou a lista de livros mais vendidos em livrarias, os em geral, não-brasileiros. Não quero de forma alguma assumir nenhuma postura de nacionalismo extremo ou chauvinista (posturas essas que criticarei ainda no presente texto). Apenas quero ressaltar como os mecanismos dessa cultura comercializada exercem um papel importantíssimo no processo destacado. Para direcionar a discussão para o ponto que quero alcançar faço menção ao célebre ensaio de Theodor Adorno intitulado “Sobre música popular”, o qual, conforme já preconiza em seu título, estabelece uma distinção entre o que o autor define como música “popular” e música “séria”. A despeito da visão um tanto quanto depreciativa dessa contraposição de música “séria” versus “não-séria”, o autor calca sua discussão sobre a música popular no conceito da estandartização, que, a grosso modo, pode ser encarado como o conjunto de padrões que transformam uma canção em um hit comercial. Uma espécie de molde, de pré-condicionamento, de fórmula para um sucesso comercial rápido. A canção popular não se calca, segundo o pensamento adorniano, numa noção de totalidade, mas de parcialidade. Um hit estaria condicionado a fatores previamente estabelecidos e o ouvinte, também inserido nesse conceito de estandartização, estaria também pré-condicionado a aceitar os elementos que atuam na composição dessa canção de sucesso (as melodias de fácil assimilação, as estruturas anteriormente moldadas de estrofe-ponte-refrão, etc.), enquanto a dita música séria estaria inserida numa concepção musical mais completa, como parte indissociável de uma grande obra, de um todo. Como exemplifica o próprio autor “na introdução do primeiro movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven, o segundo tema (em dó maior) só alcança o seu verdadeiro significado a partir do contexto. Somente através do todo é que ele adquire a sua peculiar qualidade lírica e expressiva (…)”(P.117). Nada equivalente poderia ocorrer com a música popular, segundo Adorno. Retomemos de maneira bem reducionista a história do desenvolvimento da música popular. A Indústria Musical efetivamente desabrochou na década de 1930.Músicos de talento, de diversos estilos e tendências diferentes, precisavam ser remunerados para continuarem produzindo boas canções. Surgiu então uma oportunidade inovadora para a época: a de que as pessoas pudessem comprar música, e não apenas escutá-la pelo rádio ou em apresentações ao vivo. Obviamente, para que as pessoas comprassem música fazia-se necessária uma mídia, uma forma de se compartimentalizar a música para que o cliente pudesse levá-la para sua casa. Assim nasceu o long-play, o vinil. Mas, ainda que diversas bandas nos anos seguintes lançassem discos com uma ou duas canções apenas (os ditos singles), a Indústria Musical logo se deu conta da inviabilidade econômica de se produzir essa mídia para comportar tão pouco material, quantitativamente falando. Foi daí que surgiu na música popular o conceito de álbum, o qual já começa ser tido como padrão já nos primeiros idos da década de 1960. Theodor Adorno evidentemente viveu para ver a ascensão do conceito de álbum na música popular, entretanto, num primeiro momento, um álbum era um apanhado de hits, ou seja, não constituíam um todo, mas um agrupamento de várias partes que poderiam ser independentes. Não faria diferença alguma pegar, por exemplo, um dos primeiros discos dos Beatles (como o disco Please, Please me, de 1963) e lançá-lo como uma série de singles, já que as músicas não obrigatoriamente compunham um todo, estética e liricamente falando. Mas tais conceitos começaram a mudar ao término da década de 1960, curiosamente bem perto do ano de falecimento de Adorno. Já que citei um exemplo dos “quatro rapazes de Liverpool”, tomo a liberdade de mencionar outro deles. Em 1967 os Beatles lançaram Sgt.Peppers Lonely Hearts Club, que marcaria um redirecionamento na proposta da banda. As melodias simples, inseridas na já mencionada estandartização adorniana, ou, simplificando muito, o pré-fabricado esquema “introdução-verso-verso-refrão-verso-refrão-solo de guitarra-refrão-fim da canção”, seria completamente subvertido em canções extensas, repletas por experimentalismos diversos, letras de conteúdo bem mais ambíguo e até etéreo (um reflexo da psicodelia de então) e, acima de tudo, composições que estariam conectadas umas às outras, seja por sua abordagem lírica e musical ou pelas faixas dos álbuns se entrelaçarem (o término da canção primeira ser imediatamente o início da segunda, sem pausa entre as faixas). Tal concepção de álbum mais tarde desenvolveu-se e gerou duas distinções: os álbuns conceituais e os temáticos. Um bom exemplo daquele é o disco Thick as a Brick, da banda de rock progressivo Jethro Tull, que é composto de uma única canção de exatos 43:50. Entende-se álbum conceitual como um disco em que não apenas a idéia mas também as canções se entrelaçam entre si, como se o disco todo fosse uma única canção de imensa duração. E no que concerne o álbum temático, podemos ter canções isoladas do ponto de vista da composição, ou seja, faixas que podem até vir a ser tocadas isoladamente. Entretanto, seu processo de composição, arranjamento e de abordagem lírica é extremante intrincado, coeso, construído em cima de uma mesma idéia, de forma que mesmo que uma canção toque nas rádios como um hit, ela sempre remeterá a seu álbum original. Ou seja, as discussões que Theodor Adorno levanta em seu texto “Sobre música popular” a respeito da música popular enquanto parte em contraposição à música “séria” enquanto todo são bastante válidas em sua época, mas podem ser questionadas no que diz respeito a um determinado grupo de representantes da música popular.
Sepultura: os Canibais do Heavy Metal[4].
É evidente que não foi despropositalmente que discorri tanto a respeito de noções como a de Indústria Cultural, Cultura de Massas e a oposição música popular versus música séria. Iniciei esse texto descrevendo o processo de dominação cultural em contextos pós-colonias e imperialistas e, em seguida, ao descrever segmentos de cultura, apontei a esfera da cultura de massas como grande propagadora desses discursos de sobreposição cultural. O que esbocei no parágrafo anterior e que irei expor agora é como certos elementos dessa Indústria Cultural conseguiram, de alguma forma, repensar questões que pairam sobre eles mesmos, e desenvolver suas concepções através de tais questionamentos, sempre com um foco na Música e na Literatura. Começo meu diálogo com um dos maiores fenômenos da música pesada brasileira dos últimos vinte anos, a banda Sepultura.
A história da banda tem início em 1983, quando os irmãos Cavalera, Max (vocalista e guitarrista) e Igor (baterista) juntam-se a dois amigos, Jairo (guitarrista) e Paulo Jr.(baixista) e formam a banda. O Sepultura, já com esse nome desde seus primórdios, era uma banda brasileira, sim, mas que tinha como influências bandas não-brasileiras (em sua maioria, européias). Tal influência fazia-se perceptível na maneira que as canções eram compostas, no fato da banda não cantar em sua língua-mãe, o Português, e também em temas abordados em suas letras, bastante inspirados nas mesmas temáticas das bandas de seus ídolos.Mas a partir de um determinado ponto da década de 1990 a banda redefiniu sua identidade musical de forma ousada para a época. Foi com o lançamento do disco “Chaos A.D.” que o Sepultura começou a mostrar ao mundo um heavy metal notoriamente brasileiro. Tal “brasilidade” se fez mais presente em letras voltadas diretamente para o Brasil, tais como a poluição extrema na cidade de Cubatão, o massacre no presídio paulista Carandiru e a violência urbana, além de ritmos tribais em uma faixa instrumental e experimental denominada “Kaiowas”. Tais experimentalismos musicais serviram de preparação para um disco que foi um divisor de águas na carreira da banda, lançado em 1996: “Roots”. O título do referido álbum já se faz bastante sugestivo: “raízes” em inglês. E bastante interessante era também a capa do disco, que apresenta a figura de um indígena, imagem recorrente ao longo de toda a concepção gráfica do trabalho. A banda chegou a passar uma temporada com os índios da tribo Xavantes, no Mato Grosso do Sul. Os experimentalismos musicais entre o heavy metal e os sons indígenas (visto pelo olhar de fora como “tipicamente brasileiros”) ocorrem ao longo do álbum como um todo, este repleto de tambores, batuques, sons de berimbaus e até mesmo o áudio de um ritual indígena gravado na íntegra, na faixa “Itsari” (Que significa “raízes” na linguagem dos índios Xavantes). E como se já não bastasse uma musicalidade repleta de elementos brasileiros mesclados com europeus, boa parte das letras do álbum refletem também essa mesclagem. Há o emprego de temas voltados para o cenário brasileiro como o perigo da extinção da Amazônia, a ditadura de 1964, o conceito de “tribo” indígena empregado em comparação com o de identidade nacional-ideológica de um povo como um todo.Cabe aqui a transcrição da letra “Roots, bloody roots”, acompanhada de uma tradução livre:
I / Eu
Believe in our fate / Acredito em nosso destino
We don't need to fake / Nós não precisamos fingir
It's all we wanna be / É tudo que precisamos ser
Watch me freak! / Me observe surtar!
I say / Eu digo
We're growing every day / Estamos crescendo a cada dia
Getting stronger in every way / Nos fortalecendo de todas as formas
I'll take you to a place / Te levarei a um lugar
Where we shall find our / Onde encontraremos nossas
Roots Bloody Roots (4 x) / Raízes, sangrentas raízes (4 x)
Rain / Chuva
Bring me the strength / Me traga a força
Is breeding me this way / Me cultiva dessa forma
To get to another day / Para chegar a um outro dia
and all I want to see / E tudo que quero ver
Set us free! / Nos liberte!
Why / Por que
Can't you see? / Você não vê?
Can't you feel? / Você não sente?
This is real - Ahh! / Isso é real- Ahhh!
I pray / Eu oro
We don't need to change / Para não termos que mudar
Our ways to be saved / Nossos caminhos para ser salvos
That all we wanna be / Tudo que queremos ser
Watch us freak / Nos observe surtar
Cunhambebe, nosso querido canibal!
A obra “Meu Querido Canibal” merece ser levada em alta consideração dentro da dialética estabelecida nesse ensaio. A obra foi escrita em cima de uma extensa pesquisa sobre o início da história brasileira como a conhecemos, a partir da chegada do europeu nessas terras. O foco-mor paira sobre um personagem histórico, o índio Cunhambebe, um dos maiores líderes indígenas opositores à dominação portuguesa. A obra conta em detalhes a história dos primeiros contatos dos navegadores europeus com os índios e como esse contato entre as culturas foi marcado por opressão e resistência.
A narrativa de Antônio Torres passa por uma série de episódios históricos conhecidos, tais como a Confederação dos Tamoios, a organização social das tribos indígenas, o estilo de vida dos aborígines em assumida e enfatizada alteridade em relação ao dos europeus, o abismo que separa os dois povos em termos de crenças religiosas, a intervenção dos padres Jesuítas nas difíceis relações entre os europeus e os índios, a generalizada falta de caráter e ganância dos conquistadores portugueses e a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Cunhambebe, líder da tribo dos tupinambás, é descrito como um índio forte, valente, grande estrategista militar e, como nos diz o próprio título da obra, canibal (“Este inacreditável gigante nutria-se de carne humana não apenas no sentido bíblico: orgulhava-se de possuir nas veias o sangue de cinco mil inimigos”). Tal antropofagia, obviamente, é bastante importante e não foi em vão que o autor escolheu a figura de um índio real para escrever uma obra que trata sobre choques culturais e a formação da atual noção de identidade nacional. É através da antropofagia que as culturas se conectam e se transformam em um processo de troca mútua e altamente metaforizada nesse contexto artístico literário. É o já mencionado ato de se “ingerir” outra cultura nos proclamado por Oswald de Andrade em seus Manifestos. A antropofagia, logo, representa a história da construção cultural e literária do país através da transculturação, do hibridismo de culturas, mesmo qualquer um tendo a plena noção de que tais transformações culturais não se deram de forma alguma sem derramamento de sangue ou tentativas de obliteração da cultura do dominado. Aliás, em sua precisa pesquisa histórica o autor nos deixa bem claro o quando o europeu tentou não apenas apagar mas reescrever a história dos índios e também dar a eles uma nova forma de ver a si mesmos, tal como mencionei no início do presente texto.
Diversas nações que um dia foram colônias européias, encontraram na figura do índio a melhor forma de se representar um verdadeiro ideal de nacional.E não foi diferente o caso brasileiro. No período romântico brasileiro tivemos em José de Alencar o maior exemplo de emprego da figura do índio com propósitos nacionalistas. Ainda que não se possa de forma alguma tirar o devido valor desta primeira grande tentativa em nossas letras de se representar o nacional, não se pode deixar de atentar para o fato que o retrato do índio presente em uma obra como “O Guarani” em muito difere da concepção original dos indígenas brasileiros, e muito mais se assemelha com a concepção do cavaleiro medieval europeu. Só a título de exemplificação, não me recordo do bom índio Peri em momento algum da trama de Alencar demonstrar alguma predileção canibal, e o mesmo ainda converte-se ao cristianismo na obra alencariana. E é essa a grande diferença que podemos encontrar na obra de Antônio Torres ou no disco da banda Sepultura: uma concepção do elemento indígena bem mais próxima do real, e não mais próxima da ótica do colonizador, mas da ótica do colonizado, do próprio índio. Tanto em “Meu Querido Canibal” ou em “Roots” podemos encontrar uma descrição da figura do índio marcada por notável verossimilhança, aquele através de pesquisa apurada e este através de contatos com tribos reais. E em ambas as obras temos um discurso claro do já altamente comentado nesse texto cruzamento de culturas enfatizado em um contexto de dominação e resistência ainda presente em nossos dias.
É notório que onde houve dominação também houve alguma forma de resistência. E não me refiro unicamente a resistências de ordem física, mas intelectual. E a melhor maneira de se atentar para tais focos de resistência no presente pode ser encontrado em diversos movimentos culturais de “reviviscência nacional” que eclodiram ao longo do século XX em países que um dia foram colônia. O sentimento de uma “verdadeira brasilidade” ou “verdadeira africanidade”, dentre outros tantos exemplos, por mais sejam imbuídos de uma consciência bem sedimentada dos processos de dominação e transculturação, pecam em geral por um fator: a ingênua proposta de se ignorar a influência da cultura européia na formação de sua própria cultura. Como podemos falar de uma “verdadeira” literatura,música ou cultura brasileira se nenhum movimento literário ou musical foi absolutamente germinado aqui em terras brasileiras?[5] Como apagar todos os séculos de misturas culturais ocorridas nesse país para tentar buscar um suposto sentimento de identidade nacional calcado na figura do índio unicamente, sendo que temos uma língua européia como idioma oficial da nação? Seria como aderirmos à proposta de Policarpo Quaresma de oficializar o tupi como língua oficial do Brasil. A bem da verdade é que para se ter uma compreensão mais realista e mais aprofundada do fenômeno da formação da cultura e da identidade nacional em qualquer país ex-colônia faz-se necessário estudar todo o processo sob a ótica da mesclagem de elementos culturais de diferentes origens.
Afinal, é fato que a experiência do imperialismo, ainda que através de métodos bastante questionáveis, foi uma experiência histórica de aproximação do mundo (mais claramente, entre o “Novo” e o “Velho” Mundo). A influência e a mistura de culturas foi recíproca, não se enganem. Em suma, concluo fazendo uma referência a Antônio Candido, que afirma que estudar Literatura Brasileira em verdade é estudar Literatura Comparada, já que temos e teremos sempre a referência européia. Vou além: estudar a cultura de qualquer ex-colônia como um todo (Literatura, Música, Teatro, etc) é estudar “Cultura Comparada”. E somente com uma abordagem do fenômeno cultural de tal amplitude é que podemos nos ver livres de quaisquer maniqueísmos, chauvinismos e nacionalismos exagerados ao refletir sobre qualquer acepção do termo cultura.
Bibliografia
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
COUTINHO, Eduardo. Literatura Comparada na América Latina. Ensaios. Rio de Janeiro:Ed.Uerj, 2003.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, página 48.
TORRES, Antônio. Meu querido Canibal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007.
Páginas na internet
“Manifesto Pau Brasil” e “Manifesto Antropofágico” retirados da página http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifpaubr.html . Última visita em 08/05/08.
Discografia
SEPULTURA. Roots. EUA: RoadRunner Records, 1996.
[2] Citação extraída de SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, página 48.
[3] BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[4] Faço questão de expressar aqui um agradecimento especial a meu velho amigo Tarso do Amaral, escritor, pós-graduando em Literatura Inglesa e, como eu, amante de heavy metal. Em um debate a respeito das questões que abordo nesse texto, Tarso definiu Max Cavalera, ex-membro da banda Sepultura, como o “calibã do heavy metal brasileiro”. Tomei a liberdade de adaptar sua ótima frase e incluí-la em meu trabalho.
[5] Muitas pessoas me abordaram sobre esse assunto afirmando que o samba e a bossa nova seriam estilos genuinamente brasileiros. É evidente que eles desenvolveram-se em terras tupiniquins e, por conseguinte, são “mais brasileiros” que o heavy metal, por exemplo. Mas devo lembrar que o samba nasceu da música africana dos escravos, e que a bossa nova veio do jazz norte-americano. Logo, sem querer de forma alguma desmerecer esses dois estilos dos quais também sou um bom ouvinte, é complicado afirmar, emblematicamente, que eles seriam “100% nacionais”.