Nota: Esse review foi originalmente escrito na forma lusitana da língua portuguesa. O blog Arise! optou por manter dessa forma no intuito de preservá-lo como foi concebido.
Bizarra Locomotiva – Álbum Negro
Por PhiLiz
Introdução
Os contornos da viagem de Bizarra Locomotiva sempre foram definidos por uma enorme afirmação do lado oculto e improvável das coisas mundanas. Mesmo quando se tratam temas mais ou menos comuns (e tal não acontece com tão pouca frequência como se poderia pensar à partida), a abordagem é sempre bastante pouco usual, revestindo-se de uma sensibilidade característica ou simplesmente despindo-se por completo da mesma, numa retractação quase maquinal de realidades comuns. Esta característica transversal a toda a discografia da banda tem a sua componente mais visível no que se pode chamar poesia do “nojo” de Rui Sidónio, mas também na forma como as diversas influências musicais da banda são mescladas de forma peculiar e acima de tudo, original.
A viragem da página que se deu em Ódio conferiu a Bizarra Locomotiva uma estabilidade que está logo espelhada nesse álbum e que em muito justifica a capacidade de a banda ter tido tempo para maturar o trabalho de 2004 e também conseguir a consistência necessária para lançar um álbum ainda mais adulto, como é o caso de Álbum Negro. As inesquecíveis aparições ao vivo foram relativamente frequentes e tendo havido uma continuidade de membros da banda nos anos que separam os dois álbuns, não é de espantar que uma das principais qualidades globais que se retiram quase instantaneamente do Álbum Negro, seja precisamente a consistência e a coesão entre todas as partes da “locomotiva”.
Em termos “comparativos” com o que foi feito no passado há uma clara sensação que os princípios mais recorrentes (e simultaneamente mais positivos) da abordagem artística de Bizarra Locomotiva encontram-se presentes de forma mais forte que nunca neste trabalho. Tanto até, que a banda estica os extremos por si antes definidos e, não menos importante, consegue fazê-lo em múltiplas direcções. Álbum Negro pega em todo um conjunto de características que definem o núcleo do som único da banda em todos os seus trabalhos anteriores e “depois” consegue transportar a sua experiência sonora para um outro nível, virtude do aprofundar violento dos predicados que já antes lhe pertenciam. Revisitam-se espaços e ao mesmo tempo reinventando-se o “visitante” ou, neste caso, reinventando-se a “máquina”.
A negritude envolvente o lançamento de Álbum Negro justifica-se totalmente: o sexto longa duração (contando o “híbrido” First Crime Then Live enquanto tal) mostra-se como um monstro sombrio com a idiossincrasia de um buraco negro, não só pela ausência de luminosidade, mas também pelo crescer que esta ausência provoca na sua essência brutal e soturna. Tudo isto oferecido num mundo (construído de forma cada vez mais inteligente e notável) onde a bizarria (o emprego do termo é muito mais do que um trocadilho) reina.
A viragem da página que se deu em Ódio conferiu a Bizarra Locomotiva uma estabilidade que está logo espelhada nesse álbum e que em muito justifica a capacidade de a banda ter tido tempo para maturar o trabalho de 2004 e também conseguir a consistência necessária para lançar um álbum ainda mais adulto, como é o caso de Álbum Negro. As inesquecíveis aparições ao vivo foram relativamente frequentes e tendo havido uma continuidade de membros da banda nos anos que separam os dois álbuns, não é de espantar que uma das principais qualidades globais que se retiram quase instantaneamente do Álbum Negro, seja precisamente a consistência e a coesão entre todas as partes da “locomotiva”.
Em termos “comparativos” com o que foi feito no passado há uma clara sensação que os princípios mais recorrentes (e simultaneamente mais positivos) da abordagem artística de Bizarra Locomotiva encontram-se presentes de forma mais forte que nunca neste trabalho. Tanto até, que a banda estica os extremos por si antes definidos e, não menos importante, consegue fazê-lo em múltiplas direcções. Álbum Negro pega em todo um conjunto de características que definem o núcleo do som único da banda em todos os seus trabalhos anteriores e “depois” consegue transportar a sua experiência sonora para um outro nível, virtude do aprofundar violento dos predicados que já antes lhe pertenciam. Revisitam-se espaços e ao mesmo tempo reinventando-se o “visitante” ou, neste caso, reinventando-se a “máquina”.
A negritude envolvente o lançamento de Álbum Negro justifica-se totalmente: o sexto longa duração (contando o “híbrido” First Crime Then Live enquanto tal) mostra-se como um monstro sombrio com a idiossincrasia de um buraco negro, não só pela ausência de luminosidade, mas também pelo crescer que esta ausência provoca na sua essência brutal e soturna. Tudo isto oferecido num mundo (construído de forma cada vez mais inteligente e notável) onde a bizarria (o emprego do termo é muito mais do que um trocadilho) reina.
Alinhamento
01 – Nostromo
02 – Êxtases Doirados
03 – Remorso
04 – O Anjo Exilado
05 – Ergástulo
06 – Sufoco De Vénus
07 – A Procissão Dos Édipos
08 – Engodo
09 – Láudano 3
10 – Outono
11 – Egodescentralizado
12 – Angústia
13 – O Grito
14 – Prótese
Ano 2009
Editora Raging Planet
Faixa Favorita 05 – Ergástulo
Género Industrial Metal/Rock
País Portugal
Banda
BJ – Teclado
Miguel Fonseca – Guitarra
Rui Berton – Bateria
Rui Sidónio – Voz
01 – Nostromo
02 – Êxtases Doirados
03 – Remorso
04 – O Anjo Exilado
05 – Ergástulo
06 – Sufoco De Vénus
07 – A Procissão Dos Édipos
08 – Engodo
09 – Láudano 3
10 – Outono
11 – Egodescentralizado
12 – Angústia
13 – O Grito
14 – Prótese
Ano 2009
Editora Raging Planet
Faixa Favorita 05 – Ergástulo
Género Industrial Metal/Rock
País Portugal
Banda
BJ – Teclado
Miguel Fonseca – Guitarra
Rui Berton – Bateria
Rui Sidónio – Voz
Review
O Álbum Negro. Soa a paradigma e a momento decisivo. No caso de Bizarra Locomotiva é exactamente isso e algo mais ainda. É assumir a roupagem do que é tenebroso por cima de uma identidade já de si obscura e conturbada, sendo que no final, tanto o negro como o bizarro se moldam um ao outro e claro, emerge uma triunfal mudança. Mudança com contornos de familiaridade (e que no caso de Bizarra vale imenso), mas ainda assim uma dilatação para terrenos até então menos explorados, ou explorados de uma outra forma. Formam-se pois momentos em que a escuridão absoluta é rasgada por algumas sombras; a frase poderá parecer paradoxal, mas adequa-se perfeitamente a um álbum também, de certa forma, paradoxal pela capacidade de ter silhuetas que se denotam e destacam, mesmo que essas mesmas estejam envoltas no asfixio da cor.
À partida o universo de Bizarra Locomotiva já se caracteriza pela distorção dos padrões habituais que rodeiam a idiossincrasia do género musical da banda (musical e conceptualmente). Musicalmente afastados do Industrial mais tradicional pelo estrépito provocado (sensivelmente a mesma razão que os afasta do Industrial Rock) e demasiado extravagantes mesmo para o conceito alargado de Industrial Metal, não obstante o peso inerente a BL e que neste Álbum Negro é maximizado em todas as direcções. À fúria visceral de Ódio juntam-se um conjunto de atmosferas perturbadoras que dão ainda mais corpo ao som já de si esmagador do bizarro colectivo. Sensorialmente a sensação claustrofóbica impera com a maquinaria pensada ao pormenor para deixar passar apenas a necessária dose de alívio melódico para que tudo não seja demasiado estratosférico. Deste equilíbrio vive a expressão do Álbum Negro e sobretudo a expressão frequentemente doentia da lírica singular de Rui Sidónio, factor essencial para que tudo faça sentido na desolação do habitual, desconstrução esta que percorre e identifica o álbum.
Constitui-se então aquilo que é o essencial no trabalho: a relação entre a palavra maldita e obscura (aqui especialmente obscura) de Sidónio e o conturbado mundo de pesadelo criado por Miguel Fonseca (compositor exclusivo do trabalho), situando nos pilares da electrónica assombrosa e agressiva e nos riffs distorcidos (o adjectivo tem uso duplo) que se juntam perfeitamente com os sons dissonantes que são disparados pelos samples. Os adjectivos que fazem jus aos momentos de génio gritado de Sidónio são os mesmos que se poderiam aplicar a todo o ruído cadenciado que sai da mente do antigo mentor de Thormenthor. Tudo surge à beira do abismo nesta relação homem-máquina, com o caos a pairar com o choque das duas principais forças por detrás da negritude aqui encontrada. A “unir” a vertente instrumental à vertente vocal-lírica, encontra-se o conceito do álbum baseado no livro do séc. XV, Hypnerotomachia Poliphili, que explora a fase hipnagógica do sono. Segundo a banda, o processo criativo do álbum passou precisamente pelo aproveitamento de alguns desses momentos para construir aquilo que é todo o imaginário lírico, musical e visual do Álbum Negro, onde espaços da Idade Média e ambientes futuristas convivem fragmentariamente. Faz sentido já que das imagens estranhas criadas pelo binómio palavra/som vive BL e desta vez ainda de forma mais acentuada e acima de tudo refinada.
Tamanho monstro conceptual requisitou mais potência, mais peso e mais densidade no som. Tudo é ainda mais preenchido do que no passado e os sons parecem mais diversificados, acompanhados por aquele que é o gutural português com mais capacidade de transmissão lírica (e que lírica, diga-se de passagem). Os samples imaginados por Miguel Fonseca e executados por BJ fazem parte, juntamente com os sintetizadores, da maquinaria de Bizarra Locomotiva e a sua presença faz-se sentir com mais força em momentos mais cadenciados como o início viciante de Engodo, as fantasmagóricas incursões em Outono ou a conjunção entre os samples dissonantes e os subtis apontamentos dos sintetizadores em Ergástulo. Qualquer um dos momentos mencionados é marcante no Álbum Negro e não será grande atrevimento alargar isto a toda a carreira de BL. Além deste papel mais “melódico”, os sintetizadores e sobretudo alguns dos samples criam uma áurea bastante Industrial de uma forma, que sendo pesada (às vezes extremamente), não é ligada ao cânone do Industrial Metal. Assim sendo, o seu peculiar uso é em boa parte responsável pelo som único da banda. Torna-se especialmente evidente quando se ouve o arrastado ritual d’A Procissão Dos Édipos ou o claustrofóbico e tóxico ambiente do Spoken Word doentio de Angústia.
A completar o ataque rítmico temos a bateria de Rui Berton (também da mente de Miguel Fonseca) em perfeita integração e (des)harmonia com as paisagens dos samples e sintetizadores. Esta integração é notória em faixas mais aceleradas onde o martelar constante é providenciado tanto por Berton como pelos samples de BJ. Este é de resto um dos traços mais característicos do espectro mais Industrial do trabalho já que as faixas mais rápidas apresentam este tipo de sonoridade metálica e latejante a encher por completo o trabalho. Nas faixas mais aceleradas como Êxtases Doirados ou o frenético Egodescentralizado, o poder rítmico da máquina por detrás de BL é bem evidente sendo que sobra ainda algum espaço para deambulações menos óbvias no acompanhamento dos restantes elementos. A forma como a bateria está produzida e colocada ajuda em muito à capacidade da “locomotiva” produzir sons de redobrado poder e intensidade. Nesta secção e nos momentos referidos há que não esquecer a colaboração Carlos Santos como baixista convidado que embora discreto oferece ainda mais “corpo” a algumas das faixas (ouçam-se as linhas palpitantes do baixo em Engodo como exemplo).
Para completar todo o invólucro sonoro da máquina que é BL não poderia faltar a instrumentalização por excelência daquele que é o principal compositor do grupo: o guitarrista Miguel Fonseca. O papel das guitarras é claro, vital. Se por um lado o instrumental tem na bateria, sintetizadores e samples a sua pulsão e circulação, por outro lado tem na guitarra os seus gritos, uivos e até lamentos. A imagem mais vezes criada ao ouvir o trabalho é de um rasgar constante, pela camada distorcida e dissonante, pelos riffs ritmados e de uma simplicidade terrivelmente eficaz. Predominantemente o efeito é atingido com as guitarras embebidas em distorção, centradas em riffs monolíticos que carregam e quebram o som simultaneamente. O trabalho de guitarra alude a momentos mais ligados ao Industrial Metal devido ao peso que contém, embora a escassez do conforto melódico remeta mais para o Industrial criando uma atipicidade quanto à forma como a guitarra opera em BL, distinguindo-os do que está, musicalmente, à sua volta. Isto porque não são riffs de Industrial Metal mas o seu peso também ultrapassa em larga escala o Industrial mesmo na sua vertente mais Rock. É um híbrido que expele dissonantemente identidade e unicidade, mesmo atendendo ao trabalho passado da banda.
À partida o universo de Bizarra Locomotiva já se caracteriza pela distorção dos padrões habituais que rodeiam a idiossincrasia do género musical da banda (musical e conceptualmente). Musicalmente afastados do Industrial mais tradicional pelo estrépito provocado (sensivelmente a mesma razão que os afasta do Industrial Rock) e demasiado extravagantes mesmo para o conceito alargado de Industrial Metal, não obstante o peso inerente a BL e que neste Álbum Negro é maximizado em todas as direcções. À fúria visceral de Ódio juntam-se um conjunto de atmosferas perturbadoras que dão ainda mais corpo ao som já de si esmagador do bizarro colectivo. Sensorialmente a sensação claustrofóbica impera com a maquinaria pensada ao pormenor para deixar passar apenas a necessária dose de alívio melódico para que tudo não seja demasiado estratosférico. Deste equilíbrio vive a expressão do Álbum Negro e sobretudo a expressão frequentemente doentia da lírica singular de Rui Sidónio, factor essencial para que tudo faça sentido na desolação do habitual, desconstrução esta que percorre e identifica o álbum.
Constitui-se então aquilo que é o essencial no trabalho: a relação entre a palavra maldita e obscura (aqui especialmente obscura) de Sidónio e o conturbado mundo de pesadelo criado por Miguel Fonseca (compositor exclusivo do trabalho), situando nos pilares da electrónica assombrosa e agressiva e nos riffs distorcidos (o adjectivo tem uso duplo) que se juntam perfeitamente com os sons dissonantes que são disparados pelos samples. Os adjectivos que fazem jus aos momentos de génio gritado de Sidónio são os mesmos que se poderiam aplicar a todo o ruído cadenciado que sai da mente do antigo mentor de Thormenthor. Tudo surge à beira do abismo nesta relação homem-máquina, com o caos a pairar com o choque das duas principais forças por detrás da negritude aqui encontrada. A “unir” a vertente instrumental à vertente vocal-lírica, encontra-se o conceito do álbum baseado no livro do séc. XV, Hypnerotomachia Poliphili, que explora a fase hipnagógica do sono. Segundo a banda, o processo criativo do álbum passou precisamente pelo aproveitamento de alguns desses momentos para construir aquilo que é todo o imaginário lírico, musical e visual do Álbum Negro, onde espaços da Idade Média e ambientes futuristas convivem fragmentariamente. Faz sentido já que das imagens estranhas criadas pelo binómio palavra/som vive BL e desta vez ainda de forma mais acentuada e acima de tudo refinada.
Tamanho monstro conceptual requisitou mais potência, mais peso e mais densidade no som. Tudo é ainda mais preenchido do que no passado e os sons parecem mais diversificados, acompanhados por aquele que é o gutural português com mais capacidade de transmissão lírica (e que lírica, diga-se de passagem). Os samples imaginados por Miguel Fonseca e executados por BJ fazem parte, juntamente com os sintetizadores, da maquinaria de Bizarra Locomotiva e a sua presença faz-se sentir com mais força em momentos mais cadenciados como o início viciante de Engodo, as fantasmagóricas incursões em Outono ou a conjunção entre os samples dissonantes e os subtis apontamentos dos sintetizadores em Ergástulo. Qualquer um dos momentos mencionados é marcante no Álbum Negro e não será grande atrevimento alargar isto a toda a carreira de BL. Além deste papel mais “melódico”, os sintetizadores e sobretudo alguns dos samples criam uma áurea bastante Industrial de uma forma, que sendo pesada (às vezes extremamente), não é ligada ao cânone do Industrial Metal. Assim sendo, o seu peculiar uso é em boa parte responsável pelo som único da banda. Torna-se especialmente evidente quando se ouve o arrastado ritual d’A Procissão Dos Édipos ou o claustrofóbico e tóxico ambiente do Spoken Word doentio de Angústia.
A completar o ataque rítmico temos a bateria de Rui Berton (também da mente de Miguel Fonseca) em perfeita integração e (des)harmonia com as paisagens dos samples e sintetizadores. Esta integração é notória em faixas mais aceleradas onde o martelar constante é providenciado tanto por Berton como pelos samples de BJ. Este é de resto um dos traços mais característicos do espectro mais Industrial do trabalho já que as faixas mais rápidas apresentam este tipo de sonoridade metálica e latejante a encher por completo o trabalho. Nas faixas mais aceleradas como Êxtases Doirados ou o frenético Egodescentralizado, o poder rítmico da máquina por detrás de BL é bem evidente sendo que sobra ainda algum espaço para deambulações menos óbvias no acompanhamento dos restantes elementos. A forma como a bateria está produzida e colocada ajuda em muito à capacidade da “locomotiva” produzir sons de redobrado poder e intensidade. Nesta secção e nos momentos referidos há que não esquecer a colaboração Carlos Santos como baixista convidado que embora discreto oferece ainda mais “corpo” a algumas das faixas (ouçam-se as linhas palpitantes do baixo em Engodo como exemplo).
Para completar todo o invólucro sonoro da máquina que é BL não poderia faltar a instrumentalização por excelência daquele que é o principal compositor do grupo: o guitarrista Miguel Fonseca. O papel das guitarras é claro, vital. Se por um lado o instrumental tem na bateria, sintetizadores e samples a sua pulsão e circulação, por outro lado tem na guitarra os seus gritos, uivos e até lamentos. A imagem mais vezes criada ao ouvir o trabalho é de um rasgar constante, pela camada distorcida e dissonante, pelos riffs ritmados e de uma simplicidade terrivelmente eficaz. Predominantemente o efeito é atingido com as guitarras embebidas em distorção, centradas em riffs monolíticos que carregam e quebram o som simultaneamente. O trabalho de guitarra alude a momentos mais ligados ao Industrial Metal devido ao peso que contém, embora a escassez do conforto melódico remeta mais para o Industrial criando uma atipicidade quanto à forma como a guitarra opera em BL, distinguindo-os do que está, musicalmente, à sua volta. Isto porque não são riffs de Industrial Metal mas o seu peso também ultrapassa em larga escala o Industrial mesmo na sua vertente mais Rock. É um híbrido que expele dissonantemente identidade e unicidade, mesmo atendendo ao trabalho passado da banda.
Quando o lado intrinsecamente brutal e ruidoso se ausenta por breves momentos a guitarra pode produzir estranhos lamentos como o faz em Outono ou até surpreendentemente cativante como n’O Grito, mostrando uma capacidade de variação para além da reconhecida aptidão para (des)construir faixas com riffs duros e distorcidos. Neste último campo, poder-se-ia destacar quase todo o trabalho mas torna-se especialmente interessante apreciar a forma como riffs tão simples conseguem um efeito tão obscuro como em Sufoco De Vénus ou na lentamente decadente Prótese.
O perturbado mundo do Álbum Negro nunca seria o mesmo sem a presença inconfundível do Grito de Bizarra Locomotiva. Trespassando de forma violenta e impiedosa todo o instrumental bizarro, Rui Sidónio é uma força bruta à solta, a humanidade mais carnal naquilo que é BL. A sua voz é naturalmente perturbadora: não por ser um gutural singular e visceral, mas porque além disso a força da mensagem é sentida e ouvida de forma particular. Esta capacidade singular de transmitir mais do que vocalizar, de dizer mais do que “cantar” é o que singulariza Sidónio e é o complemento perfeito para os distúrbios instrumentais do resto da banda. Doutra forma a sensação seria de impotência e incapacidade para dar continuidade ao muito negro universo que aqui se constrói. É isso que, por comparação directa, a prestação de Fernando Ribeiro no Anjo Exilado prova cabalmente, não obstante a competência da participação do vocalista de Moonspell. No entanto, as vocalizações do álbum não são apenas momentos que acrescem à tensão construída pelo instrumental através de brutalidade crua e primitiva. O assombroso Ergástulo mostra um registo quase sussurrado de uma expressividade não menos contundente do que aquela apresentada quando Sidónio parte para a pura agressão. Da mesma forma, a forma inquietantemente tranquila como parte da letra de Prótese é recitada também se afasta do registo mais presente, mantendo intactos os elementos que fazem da voz de Rui Sidónio o veículo perfeito para a transmissão da poesia do tormento criada precisamente pelo membro fundador de BL.
Desta poesia única se alimenta o álbum. Única tanto pela riqueza vocabular como pela peculiar capacidade de tornar o normal em bizarro, sempre com uma profundidade imensa. Sem qualquer desprimor para com tudo o que envolve o trabalho: nas palavras de Rui Sidónio reside a pedra de toque do trabalho, o momento em que tudo se define, onde se dá a (anti)catarse de tudo o que se vai acumulando. Pela lírica de luxuriante que corre nos Êxtases Doirados, pelas existenciais linhas de Ergástulo, pelas aliterações que se prostram n’A Procissão Dos Édipos, pelos momentos confessionais de Engodo ou pela dor pura de Angústia estão os cantos do Álbum Negro. As imagens de pesadelo onde tudo é possível pela transcendência da palavra revoltosa, ininterrupta e à beira do suportável quando aqueles momentos se encontram bem à flor da pele. É aqui que os sentidos das palavras de Sidónio também se multiplicam, pela ambiguidade que uma escrita deste género sempre acarreta e também por um subterrâneo pendor surrealista.
Num álbum dominado pela palavra (a excepção é a introdução e a incursão pela Industrial mais electrónica em Láudano 3), os momentos em que a mesma surge mais marcante e simbólica também são aqueles que será natural destacar, embora pela qualidade lírica que atravessa todo o álbum a escolha recaia (ainda mais do que seria normal) nos momentos com uma mensagem introspectiva mais profunda. Aqui surgem os momentos onde a “locomotiva” avança a uma velocidade mais moderada, quiçá pelo espinhoso caminho a percorrer…
O ambiente ritualístico de Engodo oferece-se como primeiro e perfeito exemplo de dolorosas viagens. O ambiente criado pelos teclados e guitarra é tenso e assombroso, para que a voz assuma o seu papel de expurgadora de demónios, ora quotidianos ora mais filosóficos, sempre de forma bem particular:
Rimo a constituição íntima das coisas
Que se me deparam lacrimosamente
Adormecido de todas as estranhezas
Que se me afligem ao extraviar-se
Mas vendi-me
Num largo gesto de simpatia
Que me custou a morada
Inexoravelmente calmo, seco a garganta
Sanhudo, bebo da mentira alheia
Indiferente, classifico-a raiz dos enganos
E exercito-me ao recitá-la
De forma arrastada e pesada surge a faixa final, Prótese. Para além de alguns dos riffs mais fortes do álbum, a faixa destaca-se pela sua divisão entre o Spoken Word e o som mais “tradicional” da banda. Qualquer uma das “partes” é intensa à sua forma: uma pelo natural elemento ruidoso e outra pela voz sussurrada de Sidónio declamando:
Vagueio pelo trópico de câncer com uma ogiva ao peito
mas consigo ver tudo que deixei para trás
Sinto a minha a gorda agonia a tolher-me o passo sem vestígios de pudor só de pensar no tempo que perdi… o destino assim o quis…!
Penso em ti sete vezes por segundo
Arrasto-te comigo para todo o sempre. És a besta que me persegue, a minha deficiência adquirida. Partiste-me o que tinha de mais precioso.
A minha alma mudou de envólucro.
Tarde demais para voltar atrás.
Apodreço sem vida… mas tu… tu ainda ficas!
Resta apenas uma coisa por dizer. A única que se necessária fosse conseguiria definir nesta besta erguida por Bizarra Locomotiva. Não por escassez de substância de todo o álbum mas pelo que representa enquanto paradigma do que é que a banda consegue fazer, transformando-se através da overdose daquilo que já tinha de melhor. No monumento de intensidade, potência e, à sua tremenda maneira, beleza que é Ergástulo o Álbum Negro tem o seu momento sublime. Bizarra Locomotiva tem um dos seus clássicos definitivos num registo lento, doloroso e simplesmente arrepiante:
Canso-me perplexo
da ode triunfal
apreciava a dor da luz
dissecando a graça suprema
orgulho a salvo, prostro-me
perante o teu plácido legado
o meu pensamento processa-se
silenciosamente…
Basta! Sou estrume! Esta é a minha certeza
fertilizante orgânico
do mal que tudo corrompe
Untando-te a vontade
com ruidosas tonturas
a minha omnívora alma
devora-te legando amargas costuras
Neste ergástulo de ser quem sou, envelhecido, num refluxo de culpa
acaricio-te o contorno dos olhos
e cerro os meus
deixando-te moribunda.
Basta! Sou estrume! esta é a minha certeza
fertilizante orgânico
do mal que tudo corrompe
O Álbum Negro. Foi o momento de renegar quase tudo. Renegar tudo menos a capacidade reinventiva. O resultado é uma vertiginosa viagem por lugares escuros e desagradáveis; onde o desconforto domina. Seja pelo sítio para onde se é transportado pela Bizarra Locomotiva ou pela simples visão do que essa viagem representa. Seja qual for a situação, o Álbum Negro para além de soar a tal, estabelece-se mesmo como mais um momento essencial na carreira da banda.
O perturbado mundo do Álbum Negro nunca seria o mesmo sem a presença inconfundível do Grito de Bizarra Locomotiva. Trespassando de forma violenta e impiedosa todo o instrumental bizarro, Rui Sidónio é uma força bruta à solta, a humanidade mais carnal naquilo que é BL. A sua voz é naturalmente perturbadora: não por ser um gutural singular e visceral, mas porque além disso a força da mensagem é sentida e ouvida de forma particular. Esta capacidade singular de transmitir mais do que vocalizar, de dizer mais do que “cantar” é o que singulariza Sidónio e é o complemento perfeito para os distúrbios instrumentais do resto da banda. Doutra forma a sensação seria de impotência e incapacidade para dar continuidade ao muito negro universo que aqui se constrói. É isso que, por comparação directa, a prestação de Fernando Ribeiro no Anjo Exilado prova cabalmente, não obstante a competência da participação do vocalista de Moonspell. No entanto, as vocalizações do álbum não são apenas momentos que acrescem à tensão construída pelo instrumental através de brutalidade crua e primitiva. O assombroso Ergástulo mostra um registo quase sussurrado de uma expressividade não menos contundente do que aquela apresentada quando Sidónio parte para a pura agressão. Da mesma forma, a forma inquietantemente tranquila como parte da letra de Prótese é recitada também se afasta do registo mais presente, mantendo intactos os elementos que fazem da voz de Rui Sidónio o veículo perfeito para a transmissão da poesia do tormento criada precisamente pelo membro fundador de BL.
Desta poesia única se alimenta o álbum. Única tanto pela riqueza vocabular como pela peculiar capacidade de tornar o normal em bizarro, sempre com uma profundidade imensa. Sem qualquer desprimor para com tudo o que envolve o trabalho: nas palavras de Rui Sidónio reside a pedra de toque do trabalho, o momento em que tudo se define, onde se dá a (anti)catarse de tudo o que se vai acumulando. Pela lírica de luxuriante que corre nos Êxtases Doirados, pelas existenciais linhas de Ergástulo, pelas aliterações que se prostram n’A Procissão Dos Édipos, pelos momentos confessionais de Engodo ou pela dor pura de Angústia estão os cantos do Álbum Negro. As imagens de pesadelo onde tudo é possível pela transcendência da palavra revoltosa, ininterrupta e à beira do suportável quando aqueles momentos se encontram bem à flor da pele. É aqui que os sentidos das palavras de Sidónio também se multiplicam, pela ambiguidade que uma escrita deste género sempre acarreta e também por um subterrâneo pendor surrealista.
Num álbum dominado pela palavra (a excepção é a introdução e a incursão pela Industrial mais electrónica em Láudano 3), os momentos em que a mesma surge mais marcante e simbólica também são aqueles que será natural destacar, embora pela qualidade lírica que atravessa todo o álbum a escolha recaia (ainda mais do que seria normal) nos momentos com uma mensagem introspectiva mais profunda. Aqui surgem os momentos onde a “locomotiva” avança a uma velocidade mais moderada, quiçá pelo espinhoso caminho a percorrer…
O ambiente ritualístico de Engodo oferece-se como primeiro e perfeito exemplo de dolorosas viagens. O ambiente criado pelos teclados e guitarra é tenso e assombroso, para que a voz assuma o seu papel de expurgadora de demónios, ora quotidianos ora mais filosóficos, sempre de forma bem particular:
Rimo a constituição íntima das coisas
Que se me deparam lacrimosamente
Adormecido de todas as estranhezas
Que se me afligem ao extraviar-se
Mas vendi-me
Num largo gesto de simpatia
Que me custou a morada
Inexoravelmente calmo, seco a garganta
Sanhudo, bebo da mentira alheia
Indiferente, classifico-a raiz dos enganos
E exercito-me ao recitá-la
De forma arrastada e pesada surge a faixa final, Prótese. Para além de alguns dos riffs mais fortes do álbum, a faixa destaca-se pela sua divisão entre o Spoken Word e o som mais “tradicional” da banda. Qualquer uma das “partes” é intensa à sua forma: uma pelo natural elemento ruidoso e outra pela voz sussurrada de Sidónio declamando:
Vagueio pelo trópico de câncer com uma ogiva ao peito
mas consigo ver tudo que deixei para trás
Sinto a minha a gorda agonia a tolher-me o passo sem vestígios de pudor só de pensar no tempo que perdi… o destino assim o quis…!
Penso em ti sete vezes por segundo
Arrasto-te comigo para todo o sempre. És a besta que me persegue, a minha deficiência adquirida. Partiste-me o que tinha de mais precioso.
A minha alma mudou de envólucro.
Tarde demais para voltar atrás.
Apodreço sem vida… mas tu… tu ainda ficas!
Resta apenas uma coisa por dizer. A única que se necessária fosse conseguiria definir nesta besta erguida por Bizarra Locomotiva. Não por escassez de substância de todo o álbum mas pelo que representa enquanto paradigma do que é que a banda consegue fazer, transformando-se através da overdose daquilo que já tinha de melhor. No monumento de intensidade, potência e, à sua tremenda maneira, beleza que é Ergástulo o Álbum Negro tem o seu momento sublime. Bizarra Locomotiva tem um dos seus clássicos definitivos num registo lento, doloroso e simplesmente arrepiante:
Canso-me perplexo
da ode triunfal
apreciava a dor da luz
dissecando a graça suprema
orgulho a salvo, prostro-me
perante o teu plácido legado
o meu pensamento processa-se
silenciosamente…
Basta! Sou estrume! Esta é a minha certeza
fertilizante orgânico
do mal que tudo corrompe
Untando-te a vontade
com ruidosas tonturas
a minha omnívora alma
devora-te legando amargas costuras
Neste ergástulo de ser quem sou, envelhecido, num refluxo de culpa
acaricio-te o contorno dos olhos
e cerro os meus
deixando-te moribunda.
Basta! Sou estrume! esta é a minha certeza
fertilizante orgânico
do mal que tudo corrompe
O Álbum Negro. Foi o momento de renegar quase tudo. Renegar tudo menos a capacidade reinventiva. O resultado é uma vertiginosa viagem por lugares escuros e desagradáveis; onde o desconforto domina. Seja pelo sítio para onde se é transportado pela Bizarra Locomotiva ou pela simples visão do que essa viagem representa. Seja qual for a situação, o Álbum Negro para além de soar a tal, estabelece-se mesmo como mais um momento essencial na carreira da banda.
Conclusão
No meio de trabalhos tão brilhantes como o homónimo, Bestiário ou Ódio, a monocromática proposta do Álbum Negro segue precisamente a característica principal do brilhantismo do seu antecessor: contrastar para se impor. É isso mesmo que o trabalho faz na discografia de BL. Não aperfeiçoa (no sentido de continuidade, entenda-se) o que foi feito no passado e lança-se sim em caminhos escuros (duplo sentido no termo, claro). É porventura risco maior, mas também por isso o resultado é mais estrondoso.
Depois da surpreendente (tendo em conta os percalços vividos pela banda nos tempos entre Homem Máquina e o trabalho de 2004) maturidade de Ódio, os BL fortalecem-se ainda mais. Também se poderá falar de maturidade mas num sentido distorcido (como “deliciosamente” quase tudo o é no universo artístico de BL) onde o tempo deu lugar a mais poder, mais fúria, mais “águas revoltas”: mais exagero no fundo. Outras comparações à parte, no sentido mais primitivo e selvagem de romper os limites de forma caótica o Álbum Negro cumpre perfeitamente com a ambição e atinge genialmente o objectivo.
Depois da surpreendente (tendo em conta os percalços vividos pela banda nos tempos entre Homem Máquina e o trabalho de 2004) maturidade de Ódio, os BL fortalecem-se ainda mais. Também se poderá falar de maturidade mas num sentido distorcido (como “deliciosamente” quase tudo o é no universo artístico de BL) onde o tempo deu lugar a mais poder, mais fúria, mais “águas revoltas”: mais exagero no fundo. Outras comparações à parte, no sentido mais primitivo e selvagem de romper os limites de forma caótica o Álbum Negro cumpre perfeitamente com a ambição e atinge genialmente o objectivo.
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